Procure-se novo herói nacional — dentro e fora de campo l Parte 1
Eu nunca fui uma aficionada por futebol, mas me lembro da época em que a Seleção Brasileira entrava em campo e os adversários tremiam. Isso durou até meados de 2006. Desde então, muita coisa mudou. Tento até evitar o tema, mas é difícil: moro numa cidade muito pequena, sem cinema, mas com três campos de futebol — inclusive na zona rural. Os times de várzea fazem sucesso, lotam arquibancadas e os arredores em dia de campeonato. Depois da escola ou nos fins de semana, sempre tem alguém batendo uma bolinha.
Antes de me mudar para o interior, e antes mesmo de começar a viajar, carrego comigo a memória afetiva de quando era criança em Heliópolis. Lembro nitidamente de 2006: apesar de não termos conquistado a taça, foi a última vez que vencemos de verdade. Eu morava numa rua onde os vizinhos se reuniam para pintar a calçada para a Copa. No final da rua, havia um paredão com uma bandeira do Brasil pintada à mão, enorme e (im)perfeita.
Eu li um artigo do José Vicente sobre o Rei Pelé e sua gentileza em emprestar seu prestígio para nos trazer alegria e concórdia; sobre sua atuação na defesa dos negros brasileiros contra o racismo, a escola para todos, a valorização do conhecimento colando grau no auge da fama, na autonomia do Ministério dos Esportes e na forma incontestável que construiu uma marca de excelência no futebol que até hoje usufruímos.
Por que, hoje, parece tão difícil reconhecer ou criar um ídolo assim? Pesquisando em fóruns de discussão no Reddit sobre o que faz um jogador se tornar ídolo e herói nacional, encontrei um tanto de pistas. Talvez estejamos buscando em campo um herói que também nos inspire fora dele. Alguém que nos faça lembrar do que fomos e do que ainda podemos ser. Alguém que também seja capaz de nos juntar de novo.
Para os torcedores do futebol, o que torna um ídolo é:
Identificação – jogador que se conecta emocionalmente com o clube e a torcida. Pode ser por ser torcedor declarado, formado no clube, ou demonstrar amor à camisa em atitudes e declarações.
Longevidade – permanecer muito tempo no clube, vivendo altos e baixos, criando uma história longa e profunda.
Títulos – conquistas importantes, especialmente se o jogador for protagonista nelas.
Momentos marcantes – atuações decisivas, gols icônicos, jogos memoráveis que ficam gravados na memória afetiva da torcida.
Infância/geração – ídolos muitas vezes são formados na infância dos torcedores. O ídolo de uma geração pode não ser o maior da história, mas é o mais marcante pra quem viveu aquele tempo.
Aura / Carisma – a forma como o jogador se apresenta, sua personalidade, seu papel como símbolo dentro e fora de campo.
Entrega – jogadores que dão tudo em campo, mesmo sem serem os mais técnicos, ganham respeito e afeto dos torcedores.
Decisão / Protagonismo – ser decisivo nos grandes jogos conta demais para virar ídolo.
Memória afetiva – como a torcida lembra do jogador ao longo do tempo. Isso pode mudar com os anos (ex: críticas viram saudade).
Saudosismo – a comparação com ídolos do passado cria uma barreira, tornando mais difícil alguém novo ser elevado ao mesmo status.
Olhando para a lista acima, me vem um nome na cabeça: Marta Vieira da Silva. Futebolista, seis vezes melhor jogadora do mundo, desde 2015 considerada a maior artilheira da história da Seleção Brasileira (incluindo a seleção feminina e masculina) e embaixadora da boa vontade da ONU Mulheres.
Em tantos anos de trajetória profissional, quantas vezes vimos o nome da rainha do futebol envolvido em polêmicas? Agora, quantas vezes nos emocionamos com a sua liderança e influência? Não são raras as entrevistas onde diversas jogadoras — inclusive, de gerações mais jovens — rasgando elogios a jogadora. Em quesito de significância, a Marta é um dos maiores nomes da Seleção Brasileira considerando suas conquistas com a camisa verde e amarela. No ano passado, Marta anunciou sua aposentadoria da seleção brasileira.
Eu também li uma matéria num veículo local do ABC Paulista que a Copa de Futebol Feminino fez crescer a busca por escolinhas de futebol para meninas. Em São Bernardo do Campo, o aumento foi de 20%, principalmente para meninas iniciantes entre 7 e 10 anos em 2023. Temos uma geração inteira determinada a levar esse legado adiante e trazer novas conquistas para nós, como destacou uma matéria do site oficial das Olimpíadas.
A análise dos fóruns de discussão também revelou tendências de comportamento que explicam, em parte, a dificuldade atual de consagrar novos ídolos — algo que parecia mais natural há 20 anos.
O turnover chegou nos clubes: ninguém fica tempo suficiente
Há 20 anos, os grandes jogadores passavam anos no mesmo clube. A torcida via o menino da base crescer, virar titular, conquistar títulos e envelhecer com a camisa. Hoje, a lógica do mercado acelera tudo: jogadores são vendidos muito cedo ou vivem em empréstimos sucessivos. Quando alguém começa a criar vínculo com a torcida, já está de malas prontas.
Isso enfraquece a conexão afetiva. Ídolo é quem deixa saudade, quem permanece na memória. E como criar memória afetiva se ninguém fica tempo o bastante?
O futebol virou empresa, e jogador virou funcionário
A profissionalização dos clubes (que é positiva em muitos aspectos) também trouxe uma lógica empresarial para dentro do imaginário do torcedor. Muitos passaram a avaliar o elenco como se fosse uma planilha: custo-benefício, ROI, metas.
Nesse modelo, o jogador é visto mais como um ativo do que como um representante da identidade do clube. E ídolos não são ativos — são afetos. Ídolo não precisa ser perfeito o tempo todo, mas hoje um erro pode ser o suficiente para desconstruir toda uma trajetória.
A superexposição tira o mistério
Antigamente, a gente projetava muito nos jogadores. Não sabíamos como eram fora de campo, só víamos lampejos em entrevistas ou matérias na TV. Isso permitia a criação de mitos, de heróis quase inalcançáveis.
Com as redes sociais, a relação mudou. Hoje, acompanhamos os stories do atleta, sabemos com quem ele sai, o que pensa politicamente, como se veste. Isso nos aproxima, mas também quebra o encantamento. Fica mais difícil manter a aura do ídolo quando tudo é visível — inclusive os deslizes.
O torcedor mudou — e sua relação com o clube também
A nova geração de torcedores cresceu num ambiente digital, com múltiplas janelas, conteúdos e estímulos. Muitos acompanham mais jogadores do que times, e mudam de clube com mais facilidade. A construção da idolatria exige tempo, paciência, repetição — e esses elementos andam escassos.
Além disso, há um certo cinismo generalizado: poucos acreditam que um jogador realmente "ama" o clube. O afeto parece sempre uma jogada de marketing. E isso mina a disposição para acreditar.
Ídolo é gesto, não só performance
Um ídolo não se constrói só com gols ou defesas. É preciso entrega, emoção, conexão com a torcida. É o jogador que volta ao clube por amor. Que joga mesmo machucado. Que chora na eliminação. Que levanta a taça e agradece o clube que o formou.
Esses gestos simbólicos — que não estão na estatística, mas no imaginário coletivo — são cada vez mais raros. E sem eles, o jogador até pode ser ícone, mas dificilmente será ídolo.
Medo de criar ídolos “precoces”
Hoje, existe também um medo de declarar alguém ídolo cedo demais. Parte da torcida exige que o tempo valide a idolatria, como se só quem se aposenta no clube pudesse ser homenageado.
Isso cria uma idolatria contida, quase insegura. Mesmo quando um jogador entrega desempenho, carisma e identificação com o clube, ainda há dúvida: "Será que já pode chamar de ídolo?" Com isso, deixamos de viver o presente do jogador e passamos a projetar a idolatria para um futuro que talvez nunca chegue.
Talvez, no fundo, o que estejamos procurando não seja apenas alguém que jogue bonito, mas alguém que nos emocione. Alguém que represente, em campo, as complexidades do que vivemos fora dele. Que nos lembre da rua pintada à mão, da calçada verde e amarela feita em conjunto, da sensação de pertencimento que um time inteiro podia provocar numa criança diante da TV.
Talvez o desafio não seja encontrar heróis, mas reaprender a reconhecê-los. E, quem sabe, aprender a criar espaços onde novos nomes possam florescer. Porque, no fim das contas, o futebol também é feito de histórias que a gente não esquece.
Mas e se estivermos olhando na direção errada? E se nosso herói nacional não estiver mais em campo, driblando adversários, mas sim fora dele, transformando a realidade de outras formas? Talvez o que a gente esteja chamando de escassez de ídolos no futebol seja, na verdade, uma mudança de cenário — e de expectativas.
Os gestos que nos emocionam, a entrega que nos inspira, a liderança que nos conecta... talvez tudo isso ainda exista, só que fora das quatro linhas. Talvez seja hora de ampliar o campo de visão e reconhecer que os novos heróis podem estar jogando outros jogos — tão importantes quanto.
Esse texto continua.
Nota de rodapé:
Além dos links de referência compartilhados no texto enquanto você fazia a sua leitura, as leituras abaixo podem nos ajudar a ampliar nosso repertório:
A formação das almas – José Murilo de Carvalho. Editora: Companhia das Letras.
Veneno Remédio: o futebol e o Brasil – José Miguel Wisnik. Editora: Companhia das Letras.
Mitologias – Roland Barthes. Editora: Edições 70.