Procura-se novo herói nacional — dentro e fora de campo l Parte 2
Antes de seguir adiante com nossa busca por um novo herói nacional, quero propor uma pausa para trazer à cena uma obra fundamental para entendermos a complexidade do Brasil como nação: O Povo Brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro.
Darcy navega pela nossa formação social, histórica e cultural, tentando entender não só quem somos, mas também como fomos moldados. E, ao fazer isso, reafirma a importância da autonomia política e econômica do Brasil — um ideal que, em sua essência, carrega um nacionalismo saudável e profundo.
Mas é importante abrir um parêntese aqui: a palavra "nacionalismo" sofreu um sequestro linguístico nos últimos tempos. Como aponta o doutor em filosofia Ildenilson Barbosa, o que hoje muitas vezes se apresenta como "nacionalismo" na América Latina — especialmente nas extremas direitas — é, na verdade, um projeto de ódio disfarçado de amor à pátria. Um nacionalismo de fachada que clama por "zeladores da pátria" enquanto flerta com o autoritarismo, a exclusão e o medo.
O verdadeiro nacionalismo, segundo Barbosa, exige muito mais: elevação cultural do povo, distribuição equilibrada das riquezas, rejeição à tortura, fortalecimento dos direitos fundamentais e valorização genuína da cultura que brota do povo — e não das elites. Um nacionalismo que não se constrói com discursos raivosos ou com a importação de soluções prontas, mas sim com o cultivo consciente do que é verdadeiramente nosso.
É a partir desse olhar que Darcy Ribeiro também compreendia o Brasil — e talvez seja por isso que ele enxergava no futebol um fenômeno tão central para a nossa identidade. "O futebol é o único reino em que o povo sente sua pátria", disse ele. O futebol, em suas palavras, é mais do que esporte: é território simbólico onde o brasileiro, tantas vezes excluído dos espaços de poder, finalmente se reconhece parte de algo maior.
É no drible improvisado, na festa comunitária que acontece a cada vitória, que se manifesta esse amor real pela nação — um amor popular, caloroso, espontâneo. Ali, o povo encontra um motivo para vibrar junto, sentir orgulho, se identificar. Não surpreende nem a Barbosa nem a mim que esse território esteja sob ataque.
No ano retrasado, li O Corpo Encantado das Ruas, do Luiz Antônio Simas — que, caso não me falhe à memória, reivindica que algumas cosmovisões não podem ser domadas por padrões canônicos nem mercantilizadas. Perdemos as ruas e os estádios, mas não podemos perder também nosso senso coletivo e as celebrações máximas da nossa cultura.
A Michele Carlos, diretora de conteúdo, trouxe questionamentos importantes que não podiam ficar de fora dessa continuação:
O lugar do ídolo no Brasil também precisa — ou poderia — mudar o nosso cenário? Com essa configuração mercadológica mais agressiva do futebol, é possível ter ideais? Ideais que conectem pessoas a jogadores? Aliás, em qualquer área, é possível ter ídolos como era antigamente?
Em tempos de modernidade gasosa, não posso passar ilesa à crise de identidade que atravessamos não só como indivíduos, mas também como nação. Não que em algum momento da história tivéssemos tido um consenso sobre o que estava escrito no crachá do Brasil, mas, nesse contexto de efemeridade e fragmentação quase total dos laços sociais mais estáveis, reconhecer um novo herói nacional é ainda mais desafiador.
Vivemos um futebol de performance sem conteúdo, onde o Brasil já não se reconhece, com ídolos cuja linha entre vida pessoal e profissional está cada vez mais tênue. Poucos símbolos desse esporte foram de fato exemplos de conduta pessoal — e a gente não pode se esquecer de que, em toda a história do futebol brasileiro, diversos ídolos estiveram envolvidos em polêmicas (é claro que, nos últimos dez anos, assistimos a essas falhas quase em tempo real, pelos nossos celulares, antes mesmo de chegarem aos canais de esporte).
O que os fazia serem tão diferentes, então?
É muito simples: identificação com a superação que antecede o triunfo.
Ir a campo quando as chances eram pequenas e todos duvidavam de você. Jogar em condições extremas, resistir às adversidades sem perder o brilho, a criatividade, o improviso.
Superação não apenas no placar, mas na história de vida. Nunca foi sobre ser um bom exemplo o tempo todo. E, também, não é essa a história que carregamos em comum? A do país tantas vezes desacreditado, subdesenvolvido (como eles chamavam). Choramos e nos emocionamos juntos com trajetórias que refletem, em escala pessoal e nacional, os dilemas e as esperanças de um país inteiro. Estava lá o drama e a potência do brasileiro.
Mas o que acontece se nossos heróis desconhecem seus conterrâneos? Se, em vez de trazerem protagonismo para suas lutas coletivas, passam a viver distantes delas — dentro de bolhas de privilégios que os separam justamente daqueles que os colocaram onde estão? O que acontece quando, enquanto celebram conquistas materiais, como novos carros de luxo, seus apoiadores seguem imersos em desigualdade, enfrentando as mesmas dificuldades de sempre, sem sequer serem lembrados?
Quando a distância entre herói e povo se amplia, o elo de identificação se rompe. O herói deixa de ser um espelho e se torna apenas um espetáculo. Admirado à distância, mas não amado de verdade. Aplaudido nas vitórias, mas esquecido no cotidiano. A ausência de conexão transforma figuras que poderiam inspirar em símbolos vazios, incapazes de representar a verdadeira potência e as dores do seu país.
Embora vários talentos e vozes já brilhem em outros espaços, acho difícil abrir mão do futebol. E, se você leu a primeira parte desse conteúdo, pode entender o porquê: a lista de exigências para carregar tal título é interminável. Acho difícil, também, porque precisamos pensar em alcance nacional e intergeracional. Mas, sobretudo, acho o fim da picada. Para todos nós.
Aceitar a perda de mais um espaço democrático — protagonista das alegrias e das mazelas coletivas do Brasil — para o capital, para as empresas de apostas, para a elite, é o jeito mais fácil de destruir a alegria. E é tudo o que a gente não pode fazer agora.
E aí voltamos à pergunta central: que tipo de herói o Brasil está precisando agora?
Quando comecei este artigo, achei que terminaria oferecendo um nome. Mas termino aqui, falando por mim mesma (e talvez por você também, fã de futebol ou não): nosso próximo herói nacional — dentro e fora de campo — não será uma única pessoa. Serão várias.
Serão os responsáveis pela formação de talentos dentro de campo que estejam conectados ao espírito do tempo. Serão aqueles que usarão sua visibilidade para impulsionar mudanças de verdade, para inspirar não só pelo que conquistam, mas, principalmente, pelo que representam.
Não precisamos apenas de craques. Precisamos de símbolos de pertencimento e esperança. E talvez — se a gente olhar bem — já esteja nascendo uma geração inteira disposta a vestir essa camisa de novo.