Canções do imaginário afetivo brasileiro
Se você fizer uma pesquisa rápida, vai encontrar diversos artistas dizendo que escrevem melhor quando estão apaixonados ou sofrendo de dor de cotovelo. Quem nunca dedicou uma música do Djavan para alguém? Ou quem nunca se desmanchou em lágrimas ouvindo Marília Mendonça? O imaginário não é apenas um espaço construído a partir das nossas experiências reais ou fictícias, mas também da imaginação do outro.
Para ser atravessado pelo imaginário do outro, é preciso compreender o que está por trás disso. Eu não apenas me sinto brasileira, mas também sinto em brasileiro. Por isso, quando compartilho uma música, um álbum inteiro, meus gostos por determinadas estéticas e obras audiovisuais, meu imaginário afetivo se torna um campo compartilhado, construído por múltiplas narrativas de um passado e presente experimentado por outros conterrâneos. No quesito afeto, as diferenças geracionais importam pouco – nossas experiências se encontram nas mesmas melodias e versos.
No último Culture Next, estudo divulgado pelo Spotify, 84% da Geração Z afirmou que muitas vezes ou às vezes se sente como o personagem principal de um filme quando ouve músicas e podcasts durante atividades do dia a dia. Isso explica por que buscamos trilhas sonoras para momentos que, fora da nossa cabeça, parecem banais. Explica como a música dá contorno a sentimentos que nem sabíamos nomear. Explica por que frases como "tudo que eu sinto, a Gal Costa canta", tiradas do nosso repertório afetivo, viram legendas de vida.
Não é à toa que hits do passado fazem tanto sucesso nas plataformas sociais, principalmente no TikTok. Grandes nomes da nossa música, como Evinha, que brilhou nos anos 70, voltam ao hype ao serem sampleados por artistas como BK e conquistam uma nova geração de fãs. Porque, no fim das contas, a forma de dizer pode mudar, mas os sentimentos permanecem os mesmos. Evinha poderia ter dito simplesmente: "pra você eu não volto mais", mas escolheu cantar:
"Só quero ver o que você vai responder
Quando eu disser que não acredito em palavra sua
Só quero ver o que você vai responder
Quando eu disser que o seu amor é mentira pura."
Reconhecer uma canção de amor é algo subjetivo, especialmente quando falamos de diferentes culturas. Um estudo global, realizado pela Universidade de Yale, com 5 mil participantes de 49 países apontou que, entre os quatro tipos de música apresentados (românticas, de ninar, de rituais de cura e dançantes), as músicas românticas foram as mais difíceis de identificar. Mas, no Brasil, parece que o romantismo está entranhado na nossa musicalidade. Do forró ao samba, da MPB ao sertanejo, falar de amor, paixão, sexo e decepção é quase um gênero próprio. Ana Carolina, Vitor Kley, Jão, Tim Maia, Marisa Monte, Djavan, Zezé Di Camargo & Luciano, Gilsons, Marília Mendonça, Jorge & Mateus, Fagner, Alcione, Pablo, Calcinha Preta, Fafá de Belém – cada um ao seu modo, todos narradores das aventuras amorosas brasileiras.
Para além da linguagem, muitas das nossas canções românticas são altamente descritivas, repletas de sensações e imagens visuais. No forró e no samba, por exemplo, as letras retratam o desejo e a saudade de forma visceral. Quem nunca dançou agarradinho ao som de:
"Nos braços de uma morena quase morro um belo dia
Ainda me lembro o meu cenário de amor
Um lampeão aceso, um guarda-roupa escancarado
Um vestidinho amassado debaixo de um batom
Um copo de cerveja e uma viola na parede
E uma rede convidando a balançar."
E a Geração Z, apesar de seus hábitos digitais, não escapa desse ciclo. Eles são responsáveis por criar 72% das playlists de POV (point of view), um formato que reflete a vontade de transformar cada experiência em um recorte narrativo único. Além disso, a música categorizada pelo humor "iykyk" (if you know, you know – "quem sabe, sabe") foi a mais ouvida pela geração, reforçando como o zeitgeist cultural está sempre em movimento (Culture Next 2024, Spotify).
As playlists de nicho deram lugar a uma nova forma de curadoria: a das emoções. Títulos como "Playlist para sapecagens" e "Músicas tristes demais para chorar em 2025" refletem um novo jeito de experimentar e explorar sentimentos. Se antes fazíamos mixtapes para dedicar a alguém, hoje organizamos nossos sentimentos em listas e seguimos navegando entre o passado e o presente, entre Gal Costa e Jão, entre o clássico e o viral. No fim, a gente segue fazendo o que sempre fez: tentando dar um jeito de nomear o que sente.