PT-BR: a delícia e a complexidade de sentir, criar e comunicar em brasileiro

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Existem vários tipos de brasileiros no exterior. Viajando, eu sou a que fala muito bem do Brasil e convida todo mundo pra ficar na minha casa. Uma brasileira orgulhosa e majestosa, erguendo suas penas quando o negócio é falar do meu país. A conversa fica interessante quando entro numa disputa silenciosa com os alemães sobre qual idioma é mais difícil de aprender; se é o alemão ou o português brasileiro.

Uns anos atrás fiz alguns projetos como redatora para uma das maiores marcas de beleza da América Latina. Foi a primeira vez que alguém me deu pistas sobre meus diferenciais sem eu mesmo saber quais seriam. Além de saber espanhol, porque precisava chegar num resultado que ecoasse com todo o território, também tinha passado tempo suficiente e feito amigos demais em vários outros países. Seria esse meu diferencial? Conhecimento avançado em gingado latino e tradução do intraduzível?

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Tá quente, é verdade. Até pra mim que vivo no alto de um morro, cercada de vegetação e janelas bem dispostas. Daí um dia desses fiquei dois dias sem caminhar e quando voltei pra rotina que estou tentando construir, avisei minha mãe: "Vou deixar pra sair de tarde, quando o Sol esfriar".

Quer dizer, é óbvio que o Sol não vai esfriar. Mas, para o brasileiro, o horário que o Sol esfria é ali por volta das 17h da tarde (horário de Brasília). Como explicar pro estrangeiro que na América Latina, mas principalmente no Brasil, a gente faz uso de um fenômeno linguístico chamado personificação, que é uma figura de linguagem em que damos características humanas a elementos da natureza, objetos ou conceitos abstratos (beijos, professora Beth!).

Só pra descrever o tempo, a gente se expressa meio assim:

  • Acordei cedo, mas o dia ainda não nasceu direito. (Quando está muito cedo e ainda escuro)

  • Vou aproveitar antes que a chuva desça. (Chuva chegando, usada especialmente no interior)

  • Melhor irmos agora, antes que a noite caia. (A noite sendo tratada como algo que "cai")

  • O vento resolveu aparecer do nada. (Quando começa a ventar de repente)

  • Hoje o Sol acordou preguiçoso. (Quando o dia amanhece nublado)

  • O céu tá prometendo chuva. (Indica que o tempo está nublado e pode chover)

  • Vou sair quando a poeira baixar. (Esperar um momento mais tranquilo, tanto literal quanto figurado)

  • A lua já tá dando as caras. (Quando começa a escurecer e a lua aparece)

  • O mar tá bravo hoje. (Quando as ondas estão fortes)

Daí esses dias vi aqui no meu feed a Alyne Passos comentar sobre o vídeo de um turista estrangeiro falando sobre comos os brasileiros descrevem a sensação de comer algo. Me pegou de jeito, porque também usamos muito:

  1. Esse feijão tá pedindo mais sal. (Como se o feijão tivesse vontade própria)

  2. O arroz não quer cozinhar hoje. (Quando demora para ficar pronto)

  3. Esse bolo tá fofinho. (Sugere o ponto da massa)

  4. A comida tá te esperando na mesa. (Dá a ideia de que a comida tem intenção)

  5. O pão acordou murcho hoje. (Se o pão não está fresco e fofinho)

  6. A manteiga derreteu toda de calor. (Como se tivesse sentido o calor)

  7. Essa pimenta pegou pesado! (Quando está muito forte, como se a pimenta tivesse intenção de castigar quem come)

  8. O café acordou forte hoje. (Quando está muito amargo)

  9. A carne pediu mais tempo no fogo. (Quando ainda não está bem cozida)

  10. Esse doce tá chamando meu nome! (Quando algo parece irresistível)

No português, a comida não é só alimento — ela sente, pede, espera, aquece, conforta. O pão não está velho, ele "acordou murcho". O café não é só forte, ele "acordou decidido". Enquanto outras línguas descrevem, a nossa vive. Em cada expressão, carregamos séculos de oralidade, uma cultura que transforma ações em poesia cotidiana.

Em um mundo onde tudo se torna objetivo, frio e eficiente, resistimos com metáforas, com a riqueza de uma língua que entende que o feijão "pede" sal e que o bolo "grita" por café. Enquanto outros idiomas apenas informam, o nosso envolve, emociona, personifica. E enquanto houver palavras que nos permitam sentir e não apenas descrever, haverá calor, haverá casa, haverá um futuro esperando por nós.

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Quando eu comecei a escrever as newsletter da MARGEM (e antes, a Marginal), me ocorreu que seria legal ter uma aba pra gringo ler. Daí escrevi pra Thaís Daou dizendo que precisava dela mais uma vez na linha de frente segurando essa tradução para o inglês. O que eu gosto muito em mim e mais ainda na Thais, é que a gente tem um respeito muito grande pelos jeitinhos brasileiros de falar e com o apoio dela sei que "Boteco", por exemplo, não ganharia outra tradução adaptada, mas sim uma bela nota de tradução explicando do que se tratava. Sabia também que Thais compreende minha escolha linguística há muitos anos. Mais ninguém poderia fazer aquele trabalho.

Sei que os atalhos existem, é verdade. Mas alguns caminhos mais longos e difíceis precisam ser caminhados por gente corajosa. Alguém disse aqui nessa rede — e eu perdi no feed — que o que nos torna humanos é nossa habilidade de tocarmos uns aos outros. Por isso, mesmo morrendo de medo e sem verba, sou do time de pessoas à serviço do sensível para transmitir aquilo que a gente tem mais bonito.

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